sábado, 24 de outubro de 2009

O meio.

"Eu não bebo pra esquecer, bebo pra lembrar
bebo e cambaleio e tenho você ao meu lado
é o meu instante de felicidade
vou andando na neblina das ruas
conversando com você
cantigas da perdida felicidade

Seu perfume se perfume se mistura
ao cheiro bom da madrugada
sua mão nem pesa no meu braço
mas seu contato é doce, doce!
e o rumor do seu passo é música!
música pura!
Só não vejo você, mas não faz mal
com você do meu lado isso me basta

E lá vou eu andando na neblina, feliz
até cair..."

Uma dose de fogo.
Esse calo que a gente faz do tempo
inútil. Nada desconstrói a surpresa
ou...?

Séptico. Limpo.
Esse anéstesico de boteco desce queimando
instável. Só sobram calores

momento
...!

Foco no chão.
Esse abrigo tão vulnerável das horas
insones. Fica o que há de resto
vontade.

O santo das pessoas desesperadas

"Na passarela do vale do Anhangabaú
eu vi hoje cedo pessoas escondidas da vida
embrulhadas no Notícias Populares
Diário, Folha e o Estado de S. Paulo
Depois que atravessei o Vale
percebi que minha linguagem estava solta e simples
como um vidro quebrado que a gente passa no pulso
para abreviar o futuro.
A linguagem
se fez tão próxima do poema
como se fosse uma imensa raiz furando
cada vez mais a terra para alimentar-se
e fazer da árvore um guarda-chuva.
Está doendo a dor das sombras
e a manhã é fria e clara como um lago
onde patos poderiam nadar seus silêncios.

Nada disso há no entanto
apenas as folhas e jornais, as bancas de revistas,
o Teatro Municipal e a rua Barão de Itapetininga
repleta de gente de paletó escuro
e moças de vestido comprido até o joelho.
Eu não queria dizer assim
era preciso eu acho
dizer o quê?
Atravesso entre os automóveis, meu rosto magro
e meus dedos compridos como um lápis.
Mas isso não era para entrar no poema,
era apenas para ser lembrado
enquanto meu corpo se arrasta
como um caracol
que procura uma foilha úmida.
Depois eu vou à Igreja de São Judas Tadeu
que todos dizem
ser o santo das pessoas desesperadas."

-Álvaro Alves de Faria

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Abstração platônica 1

"Take a long holiday
Let your children play
If ya give this man a ride
Sweet memory will die
Killer on the road, yeah..."

Fomos uma imagem distorcida na madrugada áspera
Enlameados e marginais amalgamando-se em becos escuros tardios
Fomos neblina
Frequências recusando-se a entrar em fase
Estradas sinuosas descendo vertiginosamente para o desconhecido
Entortamos em algum lugar do infinito

E cá estamos

Sonhos intensamente chuvosos
Fomos.

Igual-desigual

"Eu desconfiava:
todas as histórias em quadrinho são iguais.
Todos os filmes norte-americanos são iguais.
Todos os filmes de todos os países são iguais.
Todos os best-sellers são iguais.
Todos os campeonatos nacionais e internacionais de futebol são
iguais.
Todos os partidos políticos

são iguais.

Todas as mulheres que andam na moda
são iguais.
Todas as experiências de sexo

são iguais.

Todos os sonetos, gazéis, virelais, sextinas e rondós são iguais
e todos, todos

os poemas em versos livres são enfadonhamente iguais.

Todas as guerras do mundo são iguais.
Todas as fomes são iguais.
Todos os amores, iguais iguais iguais.
Iguais todos os rompimentos.
A morte é igualíssima.
Todas as criações da natureza são iguais.
Todas as ações, cruéis, piedosas ou indiferentes, são iguais.
Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho ou
coisa.
Não é igual a nada.
Todo ser humano é um estranho
ímpar."


C. Drummond de Andrade

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

AS BORDADEIRAS (DRAMATURGIA CURTA)

(Bordadeiras. Hábeis mãos que tecem estórias.)

Neide: Era valsa!
Agripa: Não, num era valsa.
Neide: Uma valsa! Tenho certeza, Dourival que é cunhado da Jossi, sabe a Jossi? Aquela filha da Dona Lurdes. Peor. Dourival viu e me contou.
Agripa: Eu tava lá Neide, vi tudo. Não era valsa. Para de morar com a teimosia.
Neide: Oh, Cristo Jesus! Que tanto querer ser dona de todas as razões no mundo. Já ta véia pra ficar cheirando coco de vaca. (Ri)
Agripa: Na flor véia, a ultima coisa que morre é o espinho. (espeta Neide com agulha)
(...)

Neide: E funcionou?
Agripa: O que?
Neide: A valsa!
Agripa: Não era valsa!
Neide: Que seja. Funcionou?
Agripa: Dum certo sim e dum outro as coisas ficam um pouco mais neblinada. Mas que era moço bonito era. Ô! Se tivesse uma eleição duns homis bonitos no mundo, esse com certeza era o segundo!
Neide: Segundo?
Agripa: É! O Primeiro é Zino, meu marido. Que Deus tenha. Virou reza. Mas esse era bonito, dava vergonha até.
Neide: Ah. Mas a moça não ficava passo atrás. Titinha até no nome já se saltava. Titinha! Juca filho de Fernanda, sabe Fernanda? Aquela que mora perto, no Onça. Peor. Juca chorava amor todo dia por ela. Pergunta se deu renda?
Agripa: Deu renda?
Neide: Deu nó!
Agripa: Pois é, sempre da dó.
Neide: E que deu do homem bonito com Titinha?
Agripa: Xi. Ficava só olhando pelos furo da cortina. Todo dia, depois da batida do final de tarde, ele passava. Já diviam ter se reparado há tempos, pois sempre ele passava posando. Me ria. Quadra e meia pra cima onde a janela dela não chegava, via sempre que ele parava e se engomava todinho, até os pelinho dos dedo ele penteava. De certo, ele jogava poses e ela sorrisos.
Neide: Aix. Ó! Até arrepia!
Agripa: Ficaram assim até que ele inventou as flores. De tempos, ele começou a parar a tropa em frente a janela dela com uma flor, cada dia de uma certa cor. Quando tinha certeza que ela via, despetalava a flor e.
Neide: Comia! Pétala por pétala. Só não comia o cabo. Ouvi dizer. Junin que era primo de consideração de um amigo de cachaça do tal moço, me disse que o amigo disse que ele fazia isso pra preparar o beijo. Dizia que só ficaria de mel com Titinha e mereceria seus beijo se a boca dele fosse pura de maldade e exalasse igual as frô.
Agripa: Óia. Que essa parte eu já num sabia. To besta!
Neide: Diziam. Continua.
Agripa: Com o passar dos tempos as coisa se embunitava de vez. Ela começou a se vestir de mais linda do que era, todos os dias, só pra ver ele passar. Cada dia um detalhe novo. Um brinco. Um colar. Um perfume. Vestido por cima de vestido.
Neide: Mire. Pra um homem que só se viu passar pela janela, nunca se conversando.
Agripa: Não deu um mês. Um mês? Menos, cada dia novo dia. Chegou num ponto em que se não podia mais de agüentar. Ele já começava a trazer um buquê inteiro de flores pra comer na frente dela. E ela já se vestia de uma única vez, todas as peças do guarda-roupa, passava todos os vidros de perfume e se usava todas as tintas disponíveis na cara.
Neide: Exagero?
Agripa: Nada. Eles tavam juntando amor. E quando ele, o amor, se atingiu nos estágio mais alto de se agüentar. Um só peito é pouco. Aconteceu a noite em questão.
Neide: Da valsa!
Agripa, olha feio: Da serenata! Tava noite de lua completa e eu que nem nada mais esperava a não ser o sono. Lá do fundo eu me pus a escutar... (cantam uma musica, que vai subindo de volume ao poucos) Tava ele lá, lindo. Fecho a rua com um chão de flores.
Neide: Não exagera, cubriu só o chão da carroça.
Agripa: E ela se vestiu com todas as roupas, de todos os guarda-roupas, de todas as vizinhas da rua.
Neide: E você ta vestindo o que agora? Não era todas?
Agripa: Ele jogou um beijo, e ela se deixou atingir. Deu passos de chuva pela rua, o que deixou ela toda molhada. Todo cheio ele, nunca que parava de cantar. Na frente da janela, ela estendeu a mão. Se tocaram pela primeira vez e se sumiram. Palavra nenhuma disseram não, pelo menos não que eu tivesse ouvido. Deixaram só pra falar com as orelhas. E baixo, bem baixo.
Neide, encantada: E o resto?
Agripa: O resto? Não se sabe. Trancaram a janela e lá ficaram. Inté hoje. Nunca que saem.
Neide: Eita. E comem o que?
Agripa: Amor, Neide. Come amor.
(...)
Neide: Agripa?
Agripa: Hum?
Neide: Será mesmo que não era valsa?

(Cantam)

do meu amigo Leandro D'Errico

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Qual é o silêncio maior do que eu?